Existem apenas dois ramos de negócio que chamam seus clientes de usuários: drogas ilegais e software. (Edward Tufte, professor na Universidade de Yale)

Durante a Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos temia que um ataque russo às suas instalações militares pudesse levar a público informações sigilosas, tornando o país vulnerável. Foi então desenvolvido um modelo de troca e compartilhamento de informações que permitisse sua descentralização. Assim, caso o Pentágono fosse atingido por um ataque, as informações ali armazenadas não seriam perdidas. Com isso foi criada a ARPANET, no âmbito da Advanced Research Projects Agency (ARPA).

Em meados dos anos 1970, o aparecimento dos microcomputadores nos levou à revolução tecnológica e iniciou-se um processo de crescimento exponencial de dados disponíveis que resultou numa verdadeira explosão da informação. Em decorrência, surgiram das algumas empresas que viriam a se tornar as gigantes tecnológicas dos dias atuais, como a Microsoft (1975) e a Apple (1976).

Após a criação da World Wide Web (WWW) em 1989, a Internet, inicialmente restrita aos ambientes acadêmicos, passou a crescer de forma extraordinária, permitindo o surgimento de outras empresas importantes, como a Amazon (1994), Google (1997), Tencent (1999), Baidu (2000), Facebook (2003) e Twitter (2006), que dominaram o mercado da informação no mundo e são as empresas mais ricas da história.

Atualmente existem cerca de 7,8 bilhões de habitantes do mundo, dos quais 4.57 bilhões (58,7%) são usuários ativos de internet. Cada um gera 1.7 MB de dados por segundo, resultando em 2,5 exabytes de informação diariamente. Espera-se que ao final de 2020 existam aproximadamente 44 zettabytes de dados no universo digital, sendo que 90% deles foram criados nos últimos 2 anos.

A Internet das Coisas (Internet of Things – IoT), que inclui máquinas, sensores e câmeras, multiplicará a geração de informações. Estima-se que em 2025 41,6 bilhões de dispositivos produzirão 79,4 zettabytes de dados.

Com quantidades gigantescas de dados de navegação coletadas de usuários a cada segundo e a transferência cada vez maior das vidas das pessoas para plataformas como as mídias sociais, passou a ser possível que as grandes empresas tecnológicas acumulem mais conhecimento sobre os indivíduos do que qualquer governo jamais pôde sonhar, mesmo aqueles mais desenvolvidos, gerando verdadeiros oceanos de informações, que são usadas para gerar um mercado publicitário de trilhões de dólares.

Se no passado era somente o Estado que coletava informações sobre os cidadãos, hoje as corporações também o fazem e de forma intensiva. Cumpre lembrar que, nas últimas décadas, a informação pessoal tornou-se a mercadoria mais importante do mundo e que existem grandes e severas restrições à possibilidade de formação de bancos de dados governamentais sobre as ações de seus cidadãos. Já com relação às empresas, não há impedimentos para que o façam.

Quase todas as pessoas se sentem confortáveis ao permitir que as empresas de tecnologia se entrelacem no seu cotidiano e acumulem essas quantidades extraordinárias de informações pessoais para fins de publicidade direcionada.

Esse volume de informação é tão grande, que são necessários enormes conjuntos de computadores para processar apenas partes desse acervo. O Google, por exemplo, possui 21 datacenters espalhados pelo mundo. A empresa não divulga quantos computadores utiliza, mas avalia-se que são mais de 1 milhão de servidores. Também são necessárias ferramentas especialmente desenvolvidas para lidar com esses grandes volumes de dados, de forma que as informações possam ser encontradas, analisadas e aproveitadas em tempo hábil.

Grandes equipes de desenvolvimento trabalham incessantemente para criar algoritmos especiais com o objetivo de direcionar a cada usuário propagandas, resultados de pesquisas e posts, com base no seu comportamento online. Os algoritmos utilizam tudo o que se sabe sobre psicologia para persuadir as pessoas, buscando uma gradativa, leve e imperceptível mudança no seu comportamento. Existem pesquisas que indicam que com 10 curtidas, o modelo conhece uma pessoa melhor que um colega de trabalho; com 70, melhor do que um amigo; com 150, melhor do que um membro da família e com 300, melhor do que o próprio cônjuge.

Essas ações podem não parecer tão invasivas, afinal trata-se de apresentar ao usuário algo que provavelmente lhe interessa. Entretanto, cada ação realizada na internet está sendo monitorada, medida e registrada. Com isso, um retrato da personalidade de cada usuário é construído por máquinas que operam quase sem supervisão humana e que são capazes de construir modelos que geram informações cada vez mais precisas sobre quem somos e nossas futuras ações. Esses dados jamais são destruídos, tudo o que alguém já fez na internet está registrado para sempre. Hoje há mais informação disponível sobre cada pessoa do que jamais se imaginou.

Segundo Tristan Harris, ex-Designer Ético do Google, muitos chamam isso de Capitalismo da Vigilância, que obtém lucro pelo rastreamento incessante do que cada pessoa faz, realizado por empresas de tecnologia que têm como modelo de negócio a garantia de que os anunciantes terão o máximo sucesso.

Em dezembro de 2015, o jornal inglês The Guardian publicou matéria que informava que o político americano Ted Cruz havia contratado os serviços da empresa britânica Cambridge Analytica, que utilizava dados do Facebook para influenciar a opinião de eleitores, sem que os usuários e proprietários dos dados soubessem. Mais tarde, esses serviços foram prestados à campanha de Donald Trump à presidência dos EUA.

O Facebook pediu desculpas e informou que a Cambridge Analytica coletou os dados de forma inadequada.

Em 2018, novas investigações revelaram que os dados de cerca de 87 milhões de pessoas, sendo 70,6 milhões de americanos, foram coletados pela empresa com o objetivo de criar um banco de dados sobre o eleitorado americano para criar perfis psicológicos para influenciar campanhas eleitorais. A empresa afirmava em suas propagandas ter reunido cerca de 5.000 pontos de dados sobre cada eleitor norte-americano.

Em maio de 2018, a Cambridge Analytica entrou com pedido de falência e encerrou suas atividades nos Estados Unidos e Reino Unido.

A coleta massiva de dados de usuários de plataforma de software, principalmente redes sociais e buscadores, permite a geração de modelos psicológicos, como os da Cambridge Analytica, que são potencialmente perigosos, pois objetivam induzir as pessoas a mudarem seus comportamentos de forma a beneficiar seus contratantes.

A atuação da Cambridge Analytica provocou um debate intenso sobre o poder das gigantes tecnológicas. Embora a empresa inglesa tenha encerrado suas atividades, os dados coletados não foram destruídos nem devolvidos aos seus proprietários. Deve-se perguntar qual o destino desse banco de dados. Além disso, não se pode esquecer que originalmente esses dados eram apenas uma pequena parte dos dados em poder do Facebook.

Por isso, deve-se avaliar com muito cuidado a possibilidade de que empresas possuam capacidade, ainda que não a utilizem, de influenciar o comportamento da maior parte da população mundial. Se é possível manipular as pessoas com o objetivo de fazê-las comprar bens e serviços, porque não seria possível influenciar, de forma subliminar, suas escolhas políticas para atender os interesses de grandes conglomerados? O caso Cambridge Analytica parece nos confirmar essa possibilidade.

É claro que tudo isso desperta o interesse de agências de Inteligência de todo o mundo, pois bancos de dados tão precisos sobre uma população inteira, de qualquer país, são armas poderosas quando se pretende conseguir alguma vantagem competitiva na arena das relações internacionais. Embora os governos tenham restrições para coletar este tipo e quantidade de dados sobre cidadãos, não há impedimentos para que contratem os serviços de empresas como a Cambridge Analytica ou, ainda, para que forcem as empresas a compartilhá-los. De posse de tais informações é possível montar estratégias que permitam conquistar corações e mentes, fundamentais em qualquer plano de combate, nos campos militar, econômico ou comercial.

Como não há fronteiras nacionais no ciberespaço e os dados coletados dizem respeito a indivíduos, sem restrições quanto ao seu local de origem, é possível construir perfis sobre populações inteiras de quaisquer países, uma arma de grosso calibre que pode causar danos formidáveis a um país soberano, se utilizada no âmbito de uma operação de propaganda ou desinformação.

Por um lado, penso que estamos muito distantes de ver uma final de Copa do Mundo entre corporações, no lugar de Brasil x Argentina, por exemplo. Entretanto, não é difícil imaginar uma delas um dia desfrutando de uma chance melhor do que um governo nacional de persuadir um indivíduo a se alinhar com seus interesses, com a continuação desse processo de coleta massiva de dados sobre pessoas e seu uso para modificar comportamentos.

Por outro, não há necessidade de muitas manobras mentais para imaginar países utilizando esse tipo de informação para impor seus interesses sobre outros com menor estrutura tecnológica. Na verdade, apenas uma repetição do que já vimos no passado, com armas mais modernas e poderosas.


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