A razão pela qual o soberano brilhante e o general sábio conquistam o inimigo sempre que se movem, e suas realizações superam as dos homens comuns, é o conhecimento prévio da situação inimiga. (Sun Tzu)

A Inteligência é uma atividade tipicamente estatal desde os seus primórdios, sendo utilizada para obter informações que garantissem vantagem competitiva nos assuntos de Estado e para proteger conhecimentos considerados estratégicos. Através da história, os grandes governantes tiveram o suporte de algum tipo de serviço de inteligência e, em função da gravidade dos temas envolvidos, sempre colocaram suas unidades de inteligência sob o mais absoluto sigilo, com raríssimas exceções.

Em seus termos mais básicos, Inteligência é a coleta, análise, processamento e disseminação de produtos através de diferentes canais. Tem como objetivo projetar eventos futuros, produzir estratégias para uso tático/operacional e auxiliar na tomada de decisões. Incorpora múltiplas camadas, ferramentas e estratégias, com o objetivo de conferir vantagens reais ou potenciais aos tomadores de decisão.

A atividade é exercida por uma Comunidade de Inteligência, que congrega várias unidades, especificamente de inteligência ou não, que produzem conhecimentos que devem ser compartilhados entre os órgãos de forma a proporcionar ao governo a melhor informação possível. Entretanto, historicamente a colaboração entre essas agências, que deveria ser óbvia e efetiva, raramente funciona. Os órgãos relutam em dividir a informação, pelos mais diversos motivos. Existem muitos exemplos, no mundo todo, em que a falta de integração e colaboração levou a desastres de grande repercussão.

Adicionalmente, essa omissão provoca uma carga excessiva de trabalho para as agências, que são obrigadas a dispender recursos humanos e financeiros para reunir informações que já estão em poder do governo. Numa época em que a quantidade de informação e a rapidez com que ela circula são extraordinárias, isso gera uma diminuição da capacidade de obtenção e análise de informações importantes.

Até o final da Guerra Fria, os segredos não eram facilmente acessíveis e os meios para buscá-los estavam somente nas mãos das agências de espionagem estatais, que podiam dedicar recursos significativos a estas atividades. Desde então, este modelo se desgastou e os objetivos das agências de inteligência deixaram de ser vinculados apenas às capacidades militares e econômicas dos blocos antagônicos, para abarcarem uma vasta gama de assuntos, tais como a proliferação de armas, o terrorismo, o crime organizado, a prevenção e monitorização de crises e, principalmente, o ciberespaço, dentre outros.

Ao mesmo tempo, as agências de inteligência estatais, presas a amarras legais de toda ordem e com dificuldades crônicas com relação aos orçamentos, perderam agilidade e flexibilidade no que diz respeito aos métodos e processos. Esse quadro, somado ao crescimento do número de alvos e da quantidade de informações a serem coletadas e processadas, fez com que algumas agências de inteligência passassem a terceirizar partes do seu trabalho. Inicialmente, aqueles relativos à pesquisa e análise de fontes abertas, por meio da obtenção de dados de múltiplos canais, processamento da informação e formação de um produto de inteligência.

Aos poucos, pessoas e empresas perceberam que podiam utilizar as técnicas e métodos de Inteligência na condução de seus negócios. São incontáveis os exemplos de sucesso daqueles que sempre estavam bem informados sobre tudo o que os cercavam. Excelentes oportunidades surgiram e foram aproveitadas, construindo grandes fortunas. Em meados do século passado surgiu a Inteligência Competitiva, desenvolvida pelo setor privado, mas com fortes raízes na atividade estatal. Muitos profissionais oriundos dos serviços de inteligência do mundo todo migraram para esse novo campo de trabalho.

No início, as fontes humanas (no inglês Human Intelligence – HUMINT) e as fontes abertas (Open Source Intelligence – OSINT) eram as formas de buscar informações. Posteriormente, outros tipos de coleta de informações surgiram, quase sempre em função de novas tecnologias. Uma delas, em particular, causou uma revolução na atividade de inteligência: o surgimento da Internet em meados do século passado, em plena Guerra Fria. A sua popularização, a proliferação de satélites e a melhoria das técnicas de análise de imagens ampliaram e facilitaram o acesso à Inteligência de Sinais (SIGINT) e de Imagens (IMINT) a países fora do eixo EUA-Rússia-China e até a atores não estatais.

A tecnologia está em processo de franca evolução, com o desenvolvimento contínuo de novas ferramentas que atendem às demandas cada vez mais crescentes do mercado, gerando um volume cada vez maior de informações pessoais, corporativas e estratégicas no ciberespaço, à disposição de quem tiver os meios para coletá-las.

Nesse contexto surgiram as empresas privadas especializadas em inteligência governamental. Inicialmente, algumas investiram na criação de software para tratamento de grandes volumes de dados e outras em programas espiões, capazes de buscar dados em computadores e smartphones de alvos específicos com grande sucesso.

Mais tarde surgiram as empresas especializadas em atividades operacionais de busca pelo dado não disponível de forma aberta, o Dado Negado na linguagem técnica. Neste caso, trata-se da completa terceirização, por um Estado soberano, das atividades de inteligência para o setor privado, sob a forma de contratos públicos.

Algumas dessas corporações, tiveram grande destaque na mídia, por razões diversas:

  • Black Cube: Agência privada de inteligência com sede em Londres, Tel Aviv e Madrid, fundada em 2010 por ex-oficiais de inteligência de Israel. Muitos dos seus funcionários também são oriundos das agências daquele país. Oferece serviços de inteligência e consultoria em casos criminais, com atuação em casos de fraude, suborno, lavagem de dinheiro, corrupção e dissipação de ativos. Em seu site a empresa se descreve como “um grupo seleto de veteranos das unidades de inteligência israelenses de elite que se especializam em soluções sob medida para desafios complexos de negócios e litígios”. Entretanto, suas táticas resultaram em uma série de controvérsias internacionais. Na Romênia, dois de seus funcionários foram condenados por acusações criminais envolvendo assédio e invasão de dispositivos eletrônicos. Mais recentemente, a empresa atraiu críticas generalizadas por sua ajuda aos esforços para difamar a reputação de mulheres que acusaram Harvey Weinstein de violência sexual.
  • Blackwater: Empresa privada militar e de inteligência, com trabalhos realizados durante as guerras no Iraque e no Afeganistão. Fundada em 1997 pelo ex-Navy Seal Erik Prince, teve o nome alterado para Xe Services em 2009 e, em 2011, para Academi. Em 2014, foi adquirida pelo Constellis Group. Manteve inúmeros contratos com o governo americano, dentre eles com o Departamento de Estado e a CIA. Em 2007, uma equipe de suporte da Blackwater, composta por 4 veículos e 19 homens, foi encarregada de escoltar um comboio de diplomatas americanos em Bagdá. Por razões ainda obscuras, os homens da Blackwater abriram fogo contra civis na Praça Nisour, matando 17 pessoas e ferindo outras 20. Em 2014, a justiça americana condenou 1 empregado da empresa por homicídio doloso e 3 por homicídio culposo. Em 2020, o Presidente Trump perdoou a todos eles.
  • DarkMatter: Empresa de cibersegurança com sede nos Emirados Árabes Unidos (EAU), que recrutou Oficiais de Inteligência que haviam trabalhado para a famosa Unidade 8200 das Forças de Defesa de Israel e para o NSO Group. Gerou uma grande cobertura da mídia por supostamente armar governos com ferramentas de inteligência para espionar potenciais dissidentes e jornalistas, entre outros alvos, chamando a atenção para a crescente proliferação de ferramentas e habilidades de inteligência no mercado aberto, disponíveis a quem tiver os recursos necessários.
  • FinFisher: Empresa especializada em software de vigilância para governos e forças policiais, que tem sido muito criticada por organizações de direitos humanos por vender seu software para países considerados não democráticos. Em 2014, os seus servidores foram invadidos e cerca de 40 Gb de informações foram disponibilizados online, incluindo o código-fonte e detalhes sobre a eficácia do FinFisher. O vazamento possibilitou que hackers de todos os níveis e matizes pudessem ter acesso aos métodos e vulnerabilidades utilizados para invasões silenciosas a dispositivos eletrônicos.
  • Hacking Team: Empresa italiana que vendia o software Remote Control System (RDS), para invasão de dispositivos eletrônicos e vigilância. O sistema permite o monitoramento de comunicações, dentre outras funções. Em 2015, o Wikileaks divulgou mais de 1 milhão de e-mails da empresa, que mostram o seu funcionamento interno. Em 2019, foi adquirida pelo grupo IntheCyber, dando origem a uma nova companhia batizada de Memento Labs. Muitos dos seus principais empregados se demitiram, deixando-a numa situação muito difícil, principalmente com a concorrência do NOS Group. Em 2020, David Vincenzetti, fundador da Hacking Team, anunciou o encerramento das suas atividades.
  • NSO Group: Empresa de tecnologia israelense cujo software Pegasus permite a vigilância remota de smartphones e é classificado como uma arma por Israel, necessitando aprovação do governo para exportação. A NSO afirma que fornece aos governos autorizados tecnologia que os ajuda a combater o terror e o crime. Há denúncias do uso do software em ataques direcionados contra ativistas de direitos humanos e jornalistas em vários países. Segundo a imprensa, o Pegasus teve papel importante na operação que resultou no assassinato do dissidente saudita Jamal Khashoggi. Em outubro de 2019, a empresa de mensagens instantâneas WhatsApp e o Facebook processaram a NSO sob a Lei de Fraude e Abuso de Computadores dos EUA (CFAA). Em 2020, a Microsoft e o Google se juntaram à ação, que acusa a empresa de utilizar uma vulnerabilidade para infectar dispositivos móveis com software destinado a interceptar comunicações. Seus fundadores são ex-integrantes da Unidade 8200 das Forças de Defesa de Israel, assim como muitos dos seus empregados.

Há também uma variedade enorme de atores não-estatais, incluindo empresas, organizações não-governamentais, grupos de pessoas e até mesmo indivíduos, trabalhando com OSINT. Um deles, o site de jornalismo investigativo independente Bellingcat, esteve nas manchetes várias vezes nos últimos anos com apurações sobre incidentes de grande visibilidade, principalmente sobre áreas de guerra, abusos de direitos humanos e criminalidade em geral. Em 2020, sua investigação sobre o envenenamento do líder da oposição russa Alexei Navalny apresentou provas sólidas do envolvimento do governo russo no ataque.

Empresas de cibersegurança, como as americanas FireEye e Crowdstrike, publicam análises de atividade cibernética que identificam os responsáveis por ataques cibernéticos. A FireEye foi a primeira a informar sobre o ataque cibernético à empresa americana SolarWinds, enquanto o trabalho da Crowdstrike relacionado às eleições presidenciais de 2016 nos EUA foi citado pelas autoridades de segurança nacional como sendo a base de suas avaliações sobre a intromissão russa.

Atores estatais, como forças policiais, às vezes se socorrem do público em geral para identificar suspeitos, divulgando imagens e outras informações relevantes para que os cidadãos possam conduzir investigações de fontes abertas. No caso da invasão do Capitólio dos Estados Unidos, autoridades federais americanas acusaram mais de 200 pessoas envolvidas, contando com comparações de imagens do dia com perfis da mídia social realizadas por cidadãos comuns.

Sem dúvidas, a atuação desta variedade de atores não oficiais pode fornecer ao Estado algumas vantagens. A mais óbvia delas é a possibilidade de negar a participação em ações polêmicas ou que foram desmascaradas. Também igualmente óbvia é a agilidade com que as estruturas privadas podem se mover, sem depender das amarras legais e orçamentárias estatais. O Estado também pode se beneficiar da criatividade e da inovação que permeiam as empresas privadas, que não dependem das estruturas pesadas e estáticas da burocracia governamental. Há ainda a possibilidade de que o governo se beneficie da publicidade que os atores não oficiais podem dar a alguns temas, permitindo que o aparato oficial os discuta sem comprometer fontes e métodos sigilosos.

Também favorece os interesses do mercado corporativo, pois a posse de informações estratégicas é fator de sucesso em uma economia globalizada. No âmbito da inteligência competitiva, sua atuação se dá principalmente na proteção do patrimônio industrial, científico e tecnológico, mas não deixa de ocorrer no que diz respeito à conquista de novos mercados e a antecipação de mudanças num ambiente de crescente predação econômica.

A longo prazo, entretanto, não se vislumbra esses atores não governamentais suplantando os recursos e vantagens inerentes das agências estatais. A avaliação de custo-benefício desta relação aponta que as vantagens oferecidas não suplantam os problemas que surgem desta relação. Seu trabalho, mesmo oferecendo benefícios potenciais, pode criar desafios complicados para os formuladores de políticas, inclusive introduzindo novos riscos no cenário de atuação das agências.

De acordo com Armin Krishnan[1], os principais problemas associados à terceirização de informações são o sigilo, o controle, a supervisão e a responsabilização, que podem resultar em, ou encorajar a politização, a corrupção, o desperdício e o abuso dos poderes públicos. Baseado em estudos de casos reais, o autor apresenta cinco pontos que preocupam com relação à terceirização de atividades relacionadas à Inteligência:

  • Possibilidade de surgimento de casos de corrupção e grave ineficiência.
  • Possibilidade de ocorrência de abusos das liberdades civis e dos direitos humanos.
  • Enfraquecimento da qualidade dos produtos de Inteligência, por meio de análises tendenciosas, que favoreçam os interesses privados em detrimento dos interesses nacionais.
  • A dificuldade de controle e supervisão, tendo em vista que os contratantes privados têm menos obrigações de repassar informações aos órgãos de controle.
  • Transferência de competência e de expertise do setor público para o privado.

Uma das vantagens oferecidas pela atuação de atores não oficiais na Atividade de Inteligência, a publicidade, também pode se tornar um problema de grandes proporções, quando expõe fatos que constrangem a política externa de governos, como no caso das investigações da Bellingcat sobre a Guerra Civil Iemenita, que apresentaram fortes evidências do uso de armas britânicas e americanas em atentados a bomba conduzidos pela coalizão liderada pela saudita, forçando os governos a responder publicamente a denúncias que provavelmente prefeririam tratar privadamente.

A apresentação de análises direcionadas como se fossem produtos de Inteligência também podem ocorrer, como nos relatórios do Syrian Observatory for Human Rights (SOHR), uma Organização Não-Governamental britânica anti-Damasco, sobre a guerra civil síria, que sofreram acusações de terem sido moldados para apoiar a perspectiva da oposição e influenciar o pensamento das autoridades ocidentais.

A atuação de amadores e/ou profissionais que não tenham o treinamento adequado, particularmente aquelas que ocorrem por meio de mídias sociais após incidentes violentos, pode redundar em problemas de grandes proporções. Investigadores amadores da Internet, aparentemente agindo de boa-fé, detectaram incorretamente os responsáveis por múltiplos incidentes violentos, incluindo a invasão ao Capitólio dos EUA e os ataques terroristas na França e no Reino Unido. É óbvio que as agências de Inteligência também podem chegar a conclusões incorretas, mas elas dispõem de processos robustos para chegar a suas conclusões de uma forma mais cuidadosa do que aquelas do público.

É fato que as agências de Inteligência estatais têm grandes dificuldades com relação à contratação de pessoal, à obtenção de orçamentos e à legislação que rege a sua atuação. Assim como também é fato que a Atividade de Inteligência é definida pela necessidade de sigilo sobre tudo que for relativo à sua atuação, tendo em vista que seus produtos se destinam ao atendimento das necessidades dos mais altos níveis de decisão e influenciam políticas públicas de grande importância para os destinos da nação, consequentemente influenciando o bem-estar da sociedade.

Analisando-se por este ângulo, é inconcebível que tarefas desta importância possam ficar ao largo dos órgãos de controle da atividade, inclusive os que têm competências administrativas. Entretanto, quando se observa a monstruosa e crescente quantidade de informações existente e as também enormes dificuldades operacionais das agências, conclui-se que esse modelo está obsoleto e fadado ao fracasso.

Por outro lado, as empresas têm excelente capacidade tecnológica, são bastante comprometidas com a inovação e não enfrentam as mesmas dificuldades quando se refere a contratar mão de obra, desde que tenham os recursos financeiros, oriundos de contratos assinados com quem tenha interesse nos seus serviços, absorvidos integralmente pelo mercado privado, independentemente da vontade e do interesse governamentais.

Concluindo, a Inteligência não pode ser privatizada, pois envolve informações destinadas a assessorar o mais alto nível de decisão de um país e deve estar em sintonia com os interesses nacionais, definidos pela Constituição, pelo Congresso Nacional e pelo Presidente eleitos pelo povo. Mas algumas atividades de coleta de informações podem ser repassadas a terceiros, respeitadas algumas condições imprescindíveis e não negociáveis. Inclusive, isso é uma tendência no mundo todo.

Assim, é natural que as agências de Inteligência terceirizem partes dos trabalhos e aproveitem a capacidade instalada das empresas privadas de Inteligência. Obviamente, não se pode pensar em delegar as tarefas referentes à produção de conhecimentos de Inteligência, que deve ser reservada a servidores públicos bem treinados, nem as atividades de busca pelas informações não disponíveis publicamente, que sempre devem ser executadas por agentes públicos igualmente bem capacitados. Também não se pode admitir que todas as atividades de coleta de informações sejam delegadas.

Desde que sejam estabelecidos limites claramente definidos entre o governo e a empresa privada, para que os direitos individuais necessários a uma democracia saudável possam ser protegidos, e controles que permitam evitar a ocorrência de abusos, esta convivência pode beneficiar o Estado e, consequentemente, a sociedade.


[1] Krishnan, Armin. “The Future of U.S. Intelligence Outsourcing.” The Brown Journal of World Affairs 18, no. 1 (2011): 195-211. Accessed March 2, 2021. http://www.jstor.org/stable/24590792.

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