Criados dentro da estrutura dos estados modernos, aos serviços de Inteligência cabe essencialmente coletar, analisar e disseminar informações estratégicas, destinadas a assessorar chefes de Estado ou de governo. Da qualidade da informação ofertada por esses órgãos singulares depende, em última instância, a perenidade dos estados, em função do apontamento de eventuais oportunidades a serem exploradas, bem como da detecção de ameaças a serem evitadas. Assim, a qualidade da decisão é diretamente impactada pela qualidade da informação que a subsidiou.
Informação oportuna e de qualidade é um produto refinado e escasso, fruto da análise de dados obtidos muitas vezes de maneira dissimulada, sem o conhecimento de seu possuidor. Para viabilizar sua produção, as agências de Inteligência lançam mão de métodos e técnicas peculiares, que devem se sustentar sobre dois pilares imprescindíveis: um arcabouço legal moderno para respaldar suas ações e recursos financeiros suficientes para financiar os altos custos de empreitada tão complexa.
Aqui nos restringiremos a abordar a necessidade de atualização do arcabouço legal à disposição dos serviços de Inteligência, especialmente quanto à maneira como fazem chegar aos seus agentes os recursos financeiros, sua aplicação e prestação de contas.
É importante pontuar que a atividade de Inteligência não é incompatível com o controle, como parece pensar parte dos nossos legisladores. É obvio que não é possível termos absoluta transparência sobre essas ações para o público em geral, mas os órgãos de controle têm acesso total às informações sobre recursos financeiros. Entretanto, é preciso entender que algumas das informações podem significar risco à vida das pessoas que participam desses trabalhos e de suas famílias. Destaque-se que, com relação à forma de prestação de contas desses recursos, já há uma legislação bastante eficiente, que precisa apenas de alguns ajustes.
No Brasil, a única maneira de que os agentes dispõem para manter o sigilo sobre a organização para a qual trabalham e sobre os seus métodos de trabalho, indispensável para a atividade de Inteligência, é o pagamento em espécie, de forma a tornar mais difícil o rastreio da origem dos recursos. Porém, o crescimento vertiginoso da capacidade de processamento e de armazenamento de dados nos últimos anos, assim como a atual crise sanitária, provocaram mudanças significativas nos meios de pagamento. As criptomoedas passaram a ser largamente aceitas e aplicativos oferecem rápidas e modernas formas de se transferir valores. Em sua maioria, esses pagamentos são processados instantaneamente, por aproximação de celulares ou diretamente nos aplicativos, os quais realizam os respectivos débitos e créditos online. Isso não só torna o pagamento em espécie obsoleto, mas também anacrônico.
Os produtos e serviços a serem adquiridos são os mesmos, o que mudou foi essencialmente a maneira como pagamos por eles. Atualmente, alguém que opte pelo pagamento de suas compras em espécie se destaca, pois os pagamentos com o uso de cartão de crédito ou por meio eletrônico se tornaram corriqueiros. Desta forma, manter a forma de pagamento em espécie como única forma de aplicação dos recursos da Inteligência passa a ser um problema, pois o que antes servia para dissimular as ações passa a ser motivo de alerta e desconfiança, prejudicando a discrição necessária às ações dos serviços de Inteligência e seus agentes.
O país tem urgência na revisão da legislação e na criação de regramento jurídico moderno, passível de atualização constante, sem o qual tanto as agências de Inteligência quanto seus agentes se verão frente a desafios intransponíveis para se adaptar às dramáticas mudanças havidas na maneira com a qual a sociedade paga por produtos e serviços. Mais especificamente, temos que discutir que mecanismo legal deve o Estado disponibilizar a seus serviços de Inteligência, para que o uso de recursos financeiros não seja fator de impedimento para o desenvolvimento de seus trabalhos.
Em muitos países, a legislação permite que as agências de Inteligência criem empresas de fachada, que permitem que os recursos sejam movimentados sem despertar a atenção. No Brasil, isso não é permitido, o que dificulta enormemente o trabalho dos agentes. Esse é um dos pontos que precisam ser discutidos pelos legisladores.
A criação desse tipo de empresa facilitaria muito o trabalho da inteligência, pois permitiria a emissão de cartões de crédito que não estejam vinculados a um órgão público, garantindo assim que os recursos utilizados e a identidade do pagador sejam mantidas. Também permitiriam a compra e o uso de criptomoedas e de linhas telefônicas, também sem qualquer ligação com a agência de Inteligência. Transferências de recursos poderiam ser realizadas de forma imediata, sem que a presença física do agente, portando grandes somas de dinheiro em espécie, seja necessária.
Outro ponto importante para discussão é a possibilidade de emissão de documentação de cobertura para os agentes, um cuidado básico para a atividade de Inteligência que nossa legislação teima em não abordar. Não há possibilidade de que o trabalho de Inteligência seja bem executado inteiramente de forma ostensiva e não há como se manter o sigilo das operações sem que as identidades dos agentes sejam desvinculadas da respectiva agência.
Tudo isso pode ser feito sem que se perca a possibilidade de controle por parte dos órgãos encarregados de fiscalizar a atividade de Inteligência. Basta que a legislação inclua as devidas formas de auditoria sobre as empresas de fachada e seus gastos, pois é perfeitamente possível criar uma legislação que permita compatibilizar as necessidades de movimentação de recursos de maneira sigilosa e de controle sobre a forma como esses recursos são gastos. Somos tão criativos em muitas áreas, mas parece que quando se trata da atuação da Inteligência somente sabemos copiar o que há de pior.
Se o Brasil pretende se colocar no grupo dos países líderes mundiais, é preciso urgentemente repensar como tratamos a Inteligência, pois não é possível sobreviver no árido mundo das relações internacionais sem informação estratégica de qualidade para subsidiar a tomada de decisões. Num mundo em que a velocidade com que a informação circula é estonteante, não há lugar para formas anacrônicas de trabalho. Estar em consonância com as novas formas de trabalhar é condição indispensável para realizar um trabalho consistente.
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