A internet mudou o mundo ao nos empurrar para a era da informação. Algo próximo de 59% da população mundial e bilhões de equipamentos estão cada vez mais conectados, a cada dia de forma mais abrangente, veloz e acessível. Transformou inapelavelmente a forma como as empresas, governos e sociedades se relacionam. Ainda que não se perceba, a tecnologia está em praticamente tudo que nos cerca. Não há mais atividade econômica relevante fora do seu alcance.

Novas tecnologias como 5G, Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês), computação em nuvem, processamento de grandes volumes de dados, biotecnologia, nanotecnologia, computação quântica, inteligência artificial (IA) e aprendizado de máquina, dentre outras inovações, prometem novas, rápidas e impressionantes mudanças.

Quais os reflexos disso tudo na Inteligência?

De início, parece significar uma grande vantagem para as agências dos países com mais capacidade de investimento, que lideram essa revolução. Mas, com a espantosa velocidade de disseminação dessas tecnologias, a tendência, na realidade, parece ser que essa vantagem seja diminuída com extrema rapidez.

Neste início de século, o mundo vem assistindo a um terremoto no que diz respeito às estruturas do poder mundial. Os Estados Unidos da América (EUA) se mantiveram no posto de maior potência mundial, mas assistiram a China se consolidar como a segunda maior economia, trabalhar intensamente para estender seu raio de influência sobre a Ásia, África e América Latina e investir pesadamente no seu aparato militar. A Rússia, que perdeu força com o término da Guerra Fria, vem tentando retomar seu status de potência militar, amparada em seu vasto arsenal nuclear e em suas reservas de petróleo e gás. Países como a Coréia do Norte, a Índia e o Paquistão também assumiram protagonismo com base na bomba atômica e, no caso indiano, numa economia crescente. O extremismo religioso, exportado do Oriente Médio para a Europa, vem promovendo uma guerra híbrida, que desestrutura as defesas de muitos países. As mudanças climáticas e a defesa dos direitos das minorias passaram a ser fatores de instabilidade.

Some-se a isso uma grande profusão de ameaças cibernéticas, como ransomware, phishing, malwares de todos os tipos, vazamentos de dados, fraudes de diversas espécies, ataques de negação distribuída de serviço (DDoS), e muitas outras que aparecem em número, complexidade e velocidade estonteantes.

No mundo físico os alvos são estáticos, ao passo em que no universo digital estão em constante mudança, em segundos tudo pode mudar de forma radical. E qualquer mudança pode inutilizar uma arma que consumiu tempo precioso e recursos fabulosos.

A interconexão das redes de comunicação possibilitou o fluxo instantâneo das informações, mas também possibilitou também o surgimento do risco, antes inexistente, de um ataque cibernético de proporções catastróficas, que consiga paralisar o mundo.

O incrível avanço da tecnologia nos últimos 40 anos, que promoveu o surgimento de um volume de dados gigantesco, teve reflexos na forma como a Inteligência trabalha. Isso não significou a extinção dos meios tradicionais de busca, mas sim a transferência de grande parte do esforço de obtenção de dados e informações para times especializados em tecnologia.

Para essa nova forma de atuação é preciso acrescentar ao perfil ideal dos profissionais de Inteligência habilidades que antes não figuravam entre as características desejáveis e que demandam muito tempo e dedicação para serem obtidas. As principais agências passaram a buscar seus profissionais preferencialmente entre aqueles com expertise na área tecnológica.

Para fazer frente a esses desafios, os principais países do mundo possuem agências ou unidades especializadas dedicadas à Inteligência e Segurança Cibernéticas.

Nos EUA, a National Security Agency (NSA) é responsável pela segurança e inteligência cibernéticas, sendo a maior entre as agências da Comunidade de Inteligência e a detentora do maior orçamento. A Central Intelligence Agency (CIA) conduziu uma ampla reestruturação e criou a Diretoria de Inovação Digital (DDI), que é responsável pelo desenvolvimento de tecnologia de ponta na área cibernética e tem na sua estrutura o Centro de Inteligência Cibernética (Center for Cyber Intelligence), que desenvolveu algumas das mais poderosas ferramentas tecnológicas para obtenção de informações, segundo vazamentos divulgados pelo Wikileaks.

No Reino Unido, o Government Communications Headquarters (GCHQ), especializado em Inteligência de Sinais (Signals Intelligence – SIGINT) e com atuação marcante na II Guerra Mundial na área de quebra de códigos, é semelhante à americana NSA.

Em Israel, a Unidade 8200 da Força de Defesa de Israel (IDF) e criada para promover a Inteligência de Sinais e a criptografia, é atualmente uma das mais conceituadas unidades de Inteligência Cibernética dentre as agências de todo o mundo. A ela são atribuídos alguns dos mais perigosos e destrutivos malware já construídos: Stuxnet, Flame, Duqu e Gauss, dentre outros.

Na China, o Exército de Libertação Popular (PLA) atribuiu ao Terceiro Departamento (3PLA) as atividades de Inteligência Cibernética e ao Quarto Departamento (4PLA) as de guerra eletrônica. A misteriosa Unit 61938 do PLA é considerada uma das mais poderosas unidades de operações cibernéticas do mundo.

Na Rússia o Serviço Federal de Segurança (FSB) possui o Centro de Segurança da Informação (TsIB), que cuida da segurança e inteligência cibernéticas, inclusive com ações ofensivas. A Diretoria Principal do Estado-Maior General das Forças Armadas da Federação Russa (GRU), inclui a GRU Unit 26165, especializada em inteligência e guerra cibernéticas. As agências americanas suspeitam de que o Serviço de Inteligência Estrangeiro (SVR) abriga o poderoso grupo hacker conhecido como Cozy Bear ou APT29.

A Coréia do Norte possui o Bureau 121, uma unidade de guerra cibernética, integrada pelos mais talentosos hackers do país. Autoridades americanas acreditam que essa unidade está por trás de alguns dos piores ataques cibernéticos desferidos contra os EUA, a Coréia do Sul e o Japão.

No Irã, o Exército Cibernético Iraniano é um grupo hacker não reconhecido pelo governo, mas que jurou lealdade ao Líder Supremo do Irã e assume a responsabilidade por diversos ataques cibernéticos. Em 2013, um general da Guarda Revolucionária Islâmica afirmou que o país tem o 4º maior poderio cibernético do mundo.

No Brasil, o Exército Brasileiro criou o Comando de Defesa Cibernética (Com D Ciber), com a responsabilidade pela coordenação e integração das atividades de defesa cibernética, no âmbito do Ministério da Defesa (MD). O Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tem, em sua estrutura, o Departamento de Segurança da Informação (DSI).

A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) possui o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações (Cepesc), que atua nas áreas de criptografia, segurança e inteligência cibernéticas. Assim como nas atividades de inteligência tradicionais, nunca houve recursos humanos ou financeiros suficientes para que se pudesse fazer um trabalho minimamente comparável ao das agências estrangeiras.

No universo cibernético assim como no mundo físico os países conseguem sucessos estrondosos e derrotas retumbantes, não importa o tamanho ou o poderio da sua estrutura de inteligência cibernética ou de guerra eletrônica.

Por exemplo, a Inteligência americana, sem dúvidas uma das mais capazes em termos tecnológicos, obteve um grande sucesso com a operação que implantou o Stuxnet nos computadores do programa nuclear iraniano, em parceira com os israelenses. Mas não conseguiu identificar e avaliar com a rapidez necessária a magnitude da operação de interferência externa nas eleições presidenciais de 2016, nem o extenso ataque cibernético a empresas e órgãos públicos em 2020. Ambos foram realizados à distância e, portanto, fora da jurisdição das leis americanas.

Em 2016, foi utilizado o aparato tecnológico das gigantes da internet para atingir cerca de 120 milhões de cidadãos, com o objetivo de minar sua confiança no processo eleitoral. No mesmo período a Cambridge Analytica também utilizou a gigantesca base de dados do Facebook para influenciar o eleitorado americano, sem que as autoridades se dessem conta.

Em 2020, informações sigilosas de empresas e órgãos públicos americanos foram roubadas, num volume ainda não conhecido, por meio de uma operação cibernética que usou a abrangência e o anonimato proporcionados pela rede mundial de computadores de forma furtiva e inovadora.

Segundo a Inteligência americana, a operação foi conduzida por hackers ligados aos serviços de inteligência russos. Entretanto, as alegações não foram comprovadas. Aliás, a dificuldade de se atribuir com certeza a responsabilidade pelas ações se deve exatamente a uma das características da internet, a facilidade de esconder sua presença na rede ou, ainda, de se fazer passar por terceiros.

Caso efetivamente tenham sido os autores dos ataques, os russos se aperfeiçoaram ainda mais em duas técnicas nas quais sempre foram mestres, a desinformação e a dissimulação.

Os incríveis avanços tecnológicos das últimas décadas proporcionam, por um lado, melhoria de performance para as agências dos países que os produzem, mas, por outro, capacitam seus adversários e minam as suas próprias defesas.

A análise de grandes volumes de dados (Big Data) e a Inteligência Artificial (IA), por exemplo, podem melhorar a capacidade de análise de uma agência ao mesmo tempo em que torna os ataques do adversário impossíveis de se detectar. O reconhecimento facial facilita a vigilância, mas dificulta as operações sigilosas.

A explosão das bases de dados – proporcionada pelas redes sociais, buscadores e comércio eletrônico – é o melhor exemplo de como há vantagens e desvantagens nas inovações tecnológicas, no que diz respeito à Inteligência.

Mais pessoas conectadas significa a ampliação das possibilidades de coleta. Todos estão incluídos no processo de coleta de informação, ainda que muitos não estejam conscientes de que fazem parte deste esforço. Enormes quantidades de dados de usuários são armazenadas a cada segundo e isso é um pesadelo em termos de privacidade e proteção de dados pessoais, mas é um tesouro para o marketing e as agências de Inteligência.

A Inteligência de Fontes Abertas, Open Source Intelligence – OSINT tira proveito de tudo isso, inclusive, em alguns casos, em áreas de difícil acesso. O Google Maps, por exemplo, tem sido utilizado como ferramenta de reconhecimento para operações diversas, inclusive as ilícitas.

O poderio tecnológico dos EUA e China os coloca na dianteira, mas também permite ao mundo todo um nivelamento às suas expensas. As gigantes tecnológicas, principalmente as americanas (Google, Twitter, Facebook, etc) permitem acesso à informação a custo mínimo. Satélites comerciais oferecem imagens de alta resolução para quem quiser e puder pagar. Antes somente EUA e Rússia tinham acesso a essa tecnologia.

Como exemplo, podemos citar a operação americana para matar Bin Laden. O governo paquistanês não detectou a ação, mas um paquistanês, consultor em tecnologia, começou a tuitar sobre helicópteros sobrevoando Abbottabad à 01:00 h, um evento raro para a região. Reportou também as explosões que se seguiram.

Está se tornando lugar comum as empresas que oferecem o monitoramento de redes sociais e outras soluções que tiram proveito de fontes abertas para quem se dispuser a pagar o preço. Tudo isso a partir da análise dos grandes volumes de dados obtidos de maneira gratuita dos usuários da internet.

O desenvolvimento da IA também possibilitou um aumento descontrolado da desinformação. Atualmente se fabricam fotografias fantásticas de pessoas inexistentes, filmes são criados com pessoas dizendo coisas que jamais disseram, em um processo batizado de Deep Fake. A capacidade de manipulação proporcionada pela tecnologia é imensa, assim como é a quantidade de fraudes por ela viabilizadas.

Entretanto, essa quantidade de informação disponível com apenas um clique facilita a obtenção de informações diretamente pelos próprios decisores, que podem tomar decisões sem o escrutínio de analistas treinados e uma análise criteriosa que considera a credibilidade da fonte. Consequentemente, a possibilidade de julgamentos prematuros, fundamentados em raciocínio baseado em desejo ou fake news, é extremamente alta.

A Inteligência é uma atividade essencial para as relações internacionais e tem por objetivo a busca pela verdade. Seu valor está na constatação de que os governantes têm melhores condições de tomarem as decisões corretas quando têm informação de qualidade disponível.

Como podemos constatar, a explosão da tecnologia, como tudo na vida, trouxe benefícios e malefícios, cabendo aos governos dotarem suas agências das melhores condições para que possam prestar o melhor assessoramento possível.

Ressalte-se que, ao contrário do que muitos imaginam, a Inteligência não é onipotente, onisciente e onipresente. Nenhuma agência o é. Para isso haveria que termos vigilância 24 x 7 x 365 sobre todas as pessoas e instituições, algo impensável numa democracia, mesmo que fosse possível.

O interessante é que a crítica preferida de muitos detratores da Inteligência se baseia em fatos que, por alguma razão, escaparam do seu radar. Mas quando se trata de propiciar as condições mínimas para que seja mais eficiente, são extremamente rápidos em negar tudo o que permitiria evitar os erros tão diligentemente criticados.

Para que a Atividade de Inteligência possa acompanhar as radicais mudanças por que passa o modo de vida moderno, identifico que são necessárias as seguintes ações:

  • Investimento expressivo em inovação e tecnologia
  • Planejamento que identifique suas forças e como usá-las
  • Fortalecimento da Comunidade de Inteligência
  • Ambiente criativo que permita o trânsito livre de ideias
  • Interação intensiva entre a Comunidade de Inteligência, empresas, sociedade civil e a academia
  • Investimento em contratação e capacitação de capital humano
  • Legislação abrangente e adequada, que permita sua plena ação
  • Melhores orçamentos, com continuidade através dos anos
  • Investimento expressivo em Proteção do Conhecimento e Contrainteligência

Todas essas condições são indispensáveis para uma Inteligência profissional e moderna, que possa fazer frente aos desafios de uma grande nação, que há muito espera para assumir definitivamente o seu papel entre as líderes do mundo desenvolvido.

Caso contrário, teremos que nos confortar com a manutenção de um papel de nenhuma relevância no contexto mundial, a reboque das decisões e sem ter voz ativa sobre assuntos que dizem respeito ao seu futuro.


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